de
António Furtado da
Rosa
Numa noite agreste
de janeiro, o vento gélido fustigava, inclemente, os rostos curtidos e
enrugados dos dois velhos pescadores. Todavia, esse facto não os demovia, e
dirigiam-se ao Cine Teatro Açor para assistirem a mais uma “fita”, como diziam,
algo que faziam frequentemente e quase religiosamente. Há muito que o Ti Manuel
e o Ti João se tinham rendido à fantasia do Cinema, aos seus heróis e aos seus
vilões, aos seus dramas e às suas comédias, aos seus encantos e aos seus
desencantos. O Cinema para eles era, sobretudo, um escape às duras fainas numa
luta contínua contra o Atlântico, por vezes benevolente e generoso, mas muitas
vezes duro e implacável.
Depois de comprarem
o bilhete, sentaram-se sensivelmente a meio da plateia e ajustaram-se, o melhor
que eles puderam, nas cadeiras de madeira. À sua volta, os mais jovens
esperavam com notória agitação o início do filme, pois tratava-se do último
filme de “Gringo”, assim era conhecido a estrela do western italiano Giuliano
Gemma, ator que levava jovens e menos jovens em catadupa às salas de cinema
pelo mundo fora. O Velho Manuel, que tal como o seu velho amigo João, não sabia
ler, já tinha visto os cartazes e reconhecido o herói da “fita”, mas não sabia
o título.
- Sabes o nome do
filme, João?
- Não. – Respondeu
o João.
João virou-se para
a fila de trás e perguntou a um jovem que roía uma fava torrada com
determinação:
- Ó rapaz, como se
chama o filme?
- O “Regresso de
Ringo”. – Respondeu o rapaz rapidamente com a fava quase a saltar-lhe da boca.
Subitamente
ouviu-se uma campainha e algumas luzes apagaram-se, a excitação aumentou, ia
dar-se início à magia…
Terminado o
genérico inicial, Gemma (Ringo) aparece no ecrã, e logo se deu a primeira
explosão de alegria a compasso de algumas palmas…
- Ele está louro
desta vez. - Murmurou o Manuel
- Não faz mal. Logo
que ele dê umas punhadas…
Poucos minutos
depois Ringo disparava e matava dois mexicanos com ar suspeito, para gáudio da
plateia.
- Começa bem. –
Comentou o João.
Os minutos passavam
enquanto Manuel e João, incapazes de lerem as legendas, tentavam perceber o
enredo entre lutas e tiroteios. Os bons e os maus já estavam bem identificados.
O filme era um western italiano vagamente baseado na “Odisseia” de Homero. Ringo
era uma espécie de Ulisses e quando regressa da Guerra da Secessão, encontra a
sua mulher, Hally (Penélope), subjugada ao domínio de Paco Fuentes, o chefe dos
bandidos. Manuel, tentando perceber o enredo lá perguntou ao amigo:
- Afinal, a sujeita
é irmã dele ou a mulher?
João encolheu os
ombros e redarguiu:
- Acho que é a
mulher.
- O sujeito meteu-se
com a mulher do outro? Isso não é pecado? Grande pulha.
- Só se o marido
descobre.
Cine Teatro Açor (Vila de Capelas) |
- João, sabes o que
eu fazia àquele bandido?
- O quê?
- Arrancava-lhe as
bolas com um arpão!
- E era bem feito.
Mas já não podes com um arpão, homem, já mal podes com um facão de matar
porcos. Um arpão… tu tens cada uma…
- Ainda sou muito
homem!
- Ainda bem. És
feio como um bode, se fosses mulher era de fugir.
As filas mais
próximas, à frente e atrás, reclamaram ruidosamente e os dois velhos lá se
calaram.
A magia continuou, seguindo as peripécias do herói. Às tantas Ringo é
sepultado, com honras militares e tudo, graças a um plano malévolo arquitetado
pelo vilão para poder casar com a mulher de Ringo.
- Manuel, quem foi
que morreu, afinal?
- Sei lá. Espera
aí.
João virou-se
novamente para o rapaz da fila de trás, que continuava a roer uma fava.
- Quem foi que
morreu?
- Ti João, eu penso
que foi… eu não sei.
- Não sabes? Não
sabes ler?
- Pouco. Nunca
atinei na escola. Tenho a cabeça mais dura que uma pedra.
- Bom, há de se
ver.
Entretanto, alguém,
junto ao roedor de favas, fez-se ouvir:
- É o gringo que
está a ser enterrado.
- O quê? – Sobressaltou-se
o velho João – Pensas que sou tolo, rapaz? Ele está ali e ao mesmo tempo está a
ser enterrado? Outro que não sabe ler.
Entretanto voltaram
os protestos a pedir silêncio enquanto o roedor de favas quase sufocava,
engolira a fava quase inteira. Nada que umas valentes pancadas nas costas do
vizinho do lado não resolveram rapidamente. A fava saltou que nem um bólide da
boca do desgraçado. Mas não desistiu, prontamente tirou mais uma fava do saco,
descascou-a e atirou-a para dentro da boca com o olhar fixo no ecrã. O filme
continuava e Ringo, por obra e graça do argumento, estava agora no quarto da
filha e é surpreendido pela mulher que acaba por o reconhecer, apesar de disfarçado,
ao som de uma bela melodia do maestro Ennio Morricone, numa cena plena de
romantismo e drama e filmada com esmero por Duccio Tessari num jogo de sombras
fabuloso. Se calhar, gostou tanto desta cena que acabou por casar com Lorella
de Luca, a atriz que interpreta Hally. Até os corações dos dois velhos pescadores
vacilaram. O silêncio era profundo. A empatia entre o herói e os espetadores era
agora mais forte do que nunca. Mas ainda faltavam alguns minutos. Ringo
contra-ataca e lutando com denodo, reconquista tudo o que lhe pertencia para
satisfação geral. Os maus foram punidos e os bons recompensados. As Luzes
acenderam-se, debaixo de aplausos. Era assim vivido e celebrado o cinema nos
anos 70 do século passado, no cinema da minha terra. Nos cinemas de tantas
terras e de tantas gentes longe dos grandes centros urbanos e elitistas. No fundo,
a maioria de nós tem um “Cinema Paraíso” como recordação, o meu chama-se Cine
Teatro Açor na Vila que me viu nascer: Vila de Capelas.
O Ti Manuel e o Ti
João saíram do cinema em silêncio a caminho de casa, em contraste com os mais
jovens que ainda vibravam com as peripécias do filme, para eles, a magia seria
substituída pelas agruras da vida real, uma vida dura. Mas durante algum tempo,
sentiram-se heróis de uma história que também fora deles…
Trailer: