Clifton será, por ventura, a
cidade mais limpa do oeste. A poeira da rua praticamente não suja os alpendres imaculados
e as fachadas coloridas. Sim, Clifton será, por ventura, também a cidade mais
colorida do oeste. Um paraíso numa terra então tão violenta e ainda por
desbravar, poderíamos pensar, mas a realidade é muito mais simples, pois nem
tudo o que luz é ouro…
E é nesta cidade que vamos
conhecer Scott (Giuliano Gemma), um jovem órfão que executa tarefas de limpeza
na cidade, entre as quais a nobre limpeza das latrinas. Scott, filho de uma
prostituta chamada Mary, é filho de pai incógnito e, como tal, filho da própria
cidade. Um filho desprezado, um filho bastardo, um incómodo, mas filho da
cidade. Um filho que não pode entrar pela porta principal do saloon, que está
proibido de falar com a filha jovem e casadoira do juiz. Tolerado por ser
necessário, pois a cidade precisa de quem a livre dos dejetos que produz, este
filho indesejado deseja possuir uma arma e conta os tostões para a comprar
enquanto treina afincadamente com uma pistola de madeira. Scott sonha fazer-se
respeitar e numa terra violenta, a única forma de se fazer respeitar era através
da voz das armas.
Mas a esta cidade vilã um dia
chega Frank Talby (Lee Van Cleef), que tal como Giuliano Gemma, estava no auge
da sua forma e interpreta um dos papéis mais carismáticos da sua carreira, um
homem que personificou personagens tão marcantes no género como o Coronel
Mortimer de “Por Mais Alguns Dólares” e o Mau de “O Bom, o Mau e o Vilão”.
Talby é um personagem intrigante, de início é impossível não simpatizarmos com
ele. Protege o jovem órfão e desmascara os notáveis habitantes de Clifton,
afinal, cúmplices num roubo de milhares de dólares, bandidos de casaca numa cidade
limpa mas com a alma suja. Mas Talby é um pistoleiro ambicioso e pretende
apoderar-se da cidade e não olha a meios, mesmo os mais violentos, para
conseguir o que quer.
Entretanto, Scott já se metamorfoseara,
e ganhara a estima e a consideração de Talby ao salvar a vida deste. Scott já
matara os seus primeiros homens e fazia-se agora respeitar e temer à lei da
bala que é brilhantemente explicado neste breve diálogo:
- Ele parece um lobo raivoso. –
Diz o médico enquanto tratava de uma ferida de Talby.
- Ele nasceu lobo, vocês é que o
tornaram raivoso. – Contrapõe Talby.
Mas aos poucos Scott vai-se
desencantando com os métodos e com o modo de vida de Talby e os notáveis de Clifton
tentam convencê-lo a mudar de lado e enfrentar Talby e o próprio juiz não tem pudor
nenhum em utilizar a filha casadoira para este fim. A jovem prova ser
indubitavelmente uma verdadeira e nada inocente representante da fina flor do
entulho de Clifton. Ironicamente, as personagens mais simpáticas do filme são
precisamente os melhores amigos de Scott e, como ele, refugo. São eles, Murph
Allan Short (Walter Rilla) o velho pistoleiro, agora a trabalhar num estábulo, que
ensina Scott a sacar e que tenta avisar o jovem lobo sobre as intenções de
Talby, como é de calcular, este faz orelhas moucas. É uma das figuras paternais
de Scott. Temos Bill, o Cego, interpretado por José Calvo, o Silvanito de “Por
Um Punhado de Dólares”, que é cego de um olho e o sem-abrigo oficial da cidade
e temos Gwen (Christa Linder) a prostituta com coração de ouro que nunca deixa
de apoiar Scott. Entramos aqui no campo da feroz crítica social, um ataque às
sociedades elitistas e ao modo como tratam os menos afortunados. Exemplo maior
é quando Abel Murray (Andrea Bosic), o dono do saloon, dispara uma descarga de
chumbo no traseiro de Bill para gáudio dos notáveis de Clifton, só porque o
pobre desgraçado, para matar o tédio, entretinha-se a atirar pedras para dentro
de umas garrafas vazias que Murray pretendia reutilizar. O acontecimento é
considerado por quem vê como “Nada de sério.”
Voltemos a Talby, ele sabe que
precisa de Scott para dominar a cidade mas tem um inimigo poderoso, a
intrínseca bondade de Scott, afinal, a cidade vilã parira um ser humano onde
menos se esperava, no ventre de uma prostituta, refugo da sociedade, mas pior
do que tudo, Talby criara um herói quando queria criar um guarda-costas. Afinal,
Talby dera-lhe um sobrenome no seu primeiro encontro, “Como se chamava a tua
mãe?”, “Mary.”, Respondeu Scott, “É um nome tão bom como outro qualquer. Porque
não te chamas Scott Mary?” Ao contrário do que pode pensar, a relação
Talby-Scott não é uma simples relação professor-discípulo, Talby,
inadvertidamente, estava simplesmente a criar o homem que o deteria, que o
mataria. Mas nesta altura já não nos importamos, Talby já não é um personagem
simpático, Talby é apenas um vilão que criou um dos melhores heróis do género,
Scott Mary, um verdadeiro paladino da justiça que esteve perto, muito perto, de
ceder aos (des)encantos do poder, mas o que é um herói sem um Nemésis?
Scott-Talby, aluno-professor ou herói-nemésis? Simplesmente dois dos personagens
mais fascinantes do género numa variação muito própria do complexo de Édipo,
afinal, Talby não deixa também de ser uma figura paternal. Scott para se tornar
adulto teve de se submeter à influência e aos ensinamentos de dois pais, Talby
e Murph Allan Short, e à influência de uma mãe, a cidade de Clifton, que o
rejeitou, mas não o derrotou, só o tornou mais forte. Afinal, se calhar, os heróis não se criam, nascem heróis.
Tonino Valerii, que começou no
meio como assistente de realização de Sergio Leone, realiza com mestria este
western psicológico e violento, onde tudo funciona, desde o argumento ao
elenco, da música ao cenário. Valerii realizou ainda outros grandes westerns
como o brilhante “O Meu Nome é Ninguém”, com Henry Fonda e Terence Hill, e outras pérolas como “O Preço do Poder”, com
Giuliano Gemma, “Uma Razão para Viver e uma para Morrer”, com James Coburn e
Bud Spencer ou “O Prazer de Matar” com Craig Hill.
A música de Riz Ortolani é
eficaz, embora não sendo das minhas preferidas, e já foi utilizada por Quentin
Tarantino nas duas partes de “Kill Bill”
e em “Django Libertado”. A.
António Furtado da Rosa
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