sábado, 9 de fevereiro de 2013

A MAGIA DE RINGO - O GRANDE CINEMA DAS PEQUENAS COMUNIDADES



O Regresso de Ringo - 1965
A MAGIA DE RINGO

de

António Furtado da Rosa

Numa noite agreste de janeiro, o vento gélido fustigava, inclemente, os rostos curtidos e enrugados dos dois velhos pescadores. Todavia, esse facto não os demovia, e dirigiam-se ao Cine Teatro Açor para assistirem a mais uma “fita”, como diziam, algo que faziam frequentemente e quase religiosamente. Há muito que o Ti Manuel e o Ti João se tinham rendido à fantasia do Cinema, aos seus heróis e aos seus vilões, aos seus dramas e às suas comédias, aos seus encantos e aos seus desencantos. O Cinema para eles era, sobretudo, um escape às duras fainas numa luta contínua contra o Atlântico, por vezes benevolente e generoso, mas muitas vezes duro e implacável.

Depois de comprarem o bilhete, sentaram-se sensivelmente a meio da plateia e ajustaram-se, o melhor que eles puderam, nas cadeiras de madeira. À sua volta, os mais jovens esperavam com notória agitação o início do filme, pois tratava-se do último filme de “Gringo”, assim era conhecido a estrela do western italiano Giuliano Gemma, ator que levava jovens e menos jovens em catadupa às salas de cinema pelo mundo fora. O Velho Manuel, que tal como o seu velho amigo João, não sabia ler, já tinha visto os cartazes e reconhecido o herói da “fita”, mas não sabia o título.

- Sabes o nome do filme, João?

- Não. – Respondeu o João.

João virou-se para a fila de trás e perguntou a um jovem que roía uma fava torrada com determinação:

- Ó rapaz, como se chama o filme?

- O “Regresso de Ringo”. – Respondeu o rapaz rapidamente com a fava quase a saltar-lhe da boca.

Subitamente ouviu-se uma campainha e algumas luzes apagaram-se, a excitação aumentou, ia dar-se início à magia…

Terminado o genérico inicial, Gemma (Ringo) aparece no ecrã, e logo se deu a primeira explosão de alegria a compasso de algumas palmas…

- Ele está louro desta vez. - Murmurou o Manuel

- Não faz mal. Logo que ele dê umas punhadas…

Poucos minutos depois Ringo disparava e matava dois mexicanos com ar suspeito, para gáudio da plateia.

- Começa bem. – Comentou o João.

Os minutos passavam enquanto Manuel e João, incapazes de lerem as legendas, tentavam perceber o enredo entre lutas e tiroteios. Os bons e os maus já estavam bem identificados. O filme era um western italiano vagamente baseado na “Odisseia” de Homero. Ringo era uma espécie de Ulisses e quando regressa da Guerra da Secessão, encontra a sua mulher, Hally (Penélope), subjugada ao domínio de Paco Fuentes, o chefe dos bandidos. Manuel, tentando perceber o enredo lá perguntou ao amigo:

- Afinal, a sujeita é irmã dele ou a mulher?

João encolheu os ombros e redarguiu:

- Acho que é a mulher.

- O sujeito meteu-se com a mulher do outro? Isso não é pecado? Grande pulha.

- Só se o marido descobre.

Cine Teatro Açor (Vila de Capelas)
Riram-se baixinho, enquanto o herói mastigava um pedaço de carne levantado do chão. O vilão cometia a suprema heresia de humilhar o herói. Os espetadores, em plena empatia com o herói, desejavam que este respondesse na mesma moeda, mas ainda era cedo, o herói teria passar ainda mais umas provações antes de retaliar e lá seguia em frente sem escutar os apelos da plateia.

- João, sabes o que eu fazia àquele bandido?

- O quê?

- Arrancava-lhe as bolas com um arpão!

- E era bem feito. Mas já não podes com um arpão, homem, já mal podes com um facão de matar porcos. Um arpão… tu tens cada uma…

- Ainda sou muito homem!

- Ainda bem. És feio como um bode, se fosses mulher era de fugir.

As filas mais próximas, à frente e atrás, reclamaram ruidosamente e os dois velhos lá se calaram.

A magia continuou, seguindo as peripécias do herói. Às tantas Ringo é sepultado, com honras militares e tudo, graças a um plano malévolo arquitetado pelo vilão para poder casar com a mulher de Ringo.

- Manuel, quem foi que morreu, afinal?

- Sei lá. Espera aí.

João virou-se novamente para o rapaz da fila de trás, que continuava a roer uma fava.

- Quem foi que morreu?

- Ti João, eu penso que foi… eu não sei.

- Não sabes? Não sabes ler?

- Pouco. Nunca atinei na escola. Tenho a cabeça mais dura que uma pedra.

- Bom, há de se ver.

Entretanto, alguém, junto ao roedor de favas, fez-se ouvir:

- É o gringo que está a ser enterrado.

- O quê? – Sobressaltou-se o velho João – Pensas que sou tolo, rapaz? Ele está ali e ao mesmo tempo está a ser enterrado? Outro que não sabe ler.
Entretanto voltaram os protestos a pedir silêncio enquanto o roedor de favas quase sufocava, engolira a fava quase inteira. Nada que umas valentes pancadas nas costas do vizinho do lado não resolveram rapidamente. A fava saltou que nem um bólide da boca do desgraçado. Mas não desistiu, prontamente tirou mais uma fava do saco, descascou-a e atirou-a para dentro da boca com o olhar fixo no ecrã. O filme continuava e Ringo, por obra e graça do argumento, estava agora no quarto da filha e é surpreendido pela mulher que acaba por o reconhecer, apesar de disfarçado, ao som de uma bela melodia do maestro Ennio Morricone, numa cena plena de romantismo e drama e filmada com esmero por Duccio Tessari num jogo de sombras fabuloso. Se calhar, gostou tanto desta cena que acabou por casar com Lorella de Luca, a atriz que interpreta Hally. Até os corações dos dois velhos pescadores vacilaram. O silêncio era profundo. A empatia entre o herói e os espetadores era agora mais forte do que nunca. Mas ainda faltavam alguns minutos. Ringo contra-ataca e lutando com denodo, reconquista tudo o que lhe pertencia para satisfação geral. Os maus foram punidos e os bons recompensados. As Luzes acenderam-se, debaixo de aplausos. Era assim vivido e celebrado o cinema nos anos 70 do século passado, no cinema da minha terra. Nos cinemas de tantas terras e de tantas gentes longe dos grandes centros urbanos e elitistas. No fundo, a maioria de nós tem um “Cinema Paraíso” como recordação, o meu chama-se Cine Teatro Açor na Vila que me viu nascer: Vila de Capelas.

O Ti Manuel e o Ti João saíram do cinema em silêncio a caminho de casa, em contraste com os mais jovens que ainda vibravam com as peripécias do filme, para eles, a magia seria substituída pelas agruras da vida real, uma vida dura. Mas durante algum tempo, sentiram-se heróis de uma história que também fora deles…
                                                              


                                                              
Trailer: