sexta-feira, 14 de junho de 2013

CARA A CARA: A DESCOBERTA E A ABDICAÇÃO DE UMA CONSCIÊNCIA


Brad Fletcher (Gian Maria Volontè) interpreta um professor universitário de Boston que devido a uma doença pulmonar, tem de ir viver para o sudoeste americano. Acaba por se cruzar com Beau Bennet (Tomas Milian) e com o seu bando. Fascinado pelo seu modo de vida, Fletcher assume o comando do bando e lidera-o com esmerada crueldade.

Contudo, ao contrário do que indica a sinopse acima descrita, Cara a Cara (Faccia a Faccia) não é uma simples luta de galos por um poleiro, bem pelo contrário, o filme leva-nos a uma viagem intensa ao íntimo de dois homens completamente diferentes à partida. Serão assim tão diferentes?

Sollima rodeou-se de atores, que além de muito bons, eram confiáveis e que souberam interpretar magistralmente toda uma profunda transformação psicológica a que os personagens principais, Brad e Beau, são sujeitos. O filme encaminha-nos, principalmente, para uma viagem de transformações e confrontos. Assistimos à metamorfose de um afável e conceituado professor universitário, uma espécie de Dr. Jeckyll num Mr. Hyde que se deixa seduzir pelo fascínio da vida de fora-da-lei e pelo poder que esta faculta. Por outro lado, Um implacável fora-da-lei metamorfoseia-se de Mr. Hyde em Dr. Jeckyll, contudo, sem a transformação física que encontramos no romance do escocês Robert Louis Stevenson, o que nos levará a concluir que o mal e o bem não têm rosto, são duas faces da mesma moeda e que a personalidade de alguém poderá mudar conforme as circunstâncias e o meio que o rodeia. Neste cenário, enquanto Beauregard Bennett descobre uma consciência, Brad Fletcher abdica da sua.
Filme de confrontos por excelência, podemos testemunhar uns quantos neste filme. O bem contra o mal, a civilização culta contra o oeste selvagem inculto, a sabedoria puramente académica contra a sabedoria empírica. Brad Fletcher crê mesmo que a sua inteligência superior tornará o bando, que vive numa espécie de comuna chamada “Puerta de Sol” (um piscar de olhos de Sollima à alegoria política), insuperável.

Sollima apresenta-nos um terceiro personagem que terá uma importância fulcral no enredo. Charley Siringo, interpretado por William Berger, um agente da Pinkerton que se infiltra no bando e assiste a todas estas transformações e que, após desfigurar com três tiros no rosto um bandido com a compleição semelhante a Beau, liberta-o e diz-lhe:
“- A Lei ficará satisfeita com um falso Beauregard Bennet. De qualquer maneira, o verdadeiro já não existe.”
Cara a Cara, apesar de toda esta intensidade psicológica, mantém todas as características de um bom western-spaghetti, a música fenomenal de Ennio Morricone, tiroteios bem encenados, uma tortura com requintes de malvadez, a ausência total de heróis e, claro, as maravilhosas paisagens áridas de Almeria.
Contudo, apesar de ser um dos expoentes do género, Cara a Cara só estreou em Portugal em 28 de Novembro de 1980, no Cinema Roxy, em Lisboa. Passou despercebido e, a título de curiosidade, transcrevo uma nota crítica, não assinada, publicada na época no B.C. (Boletim Cinematográfico) n.º 1560:

“Nota Crítica: O filme segue o protótipo inferior do “western-spaghetti”, sendo as figuras da acção manufacturadas de modo a enquadrarem-se num enredo cuja simplicidade atinge a raíz do ingénuo.
Gian Maria Volontè, hoje um actor consagrado, passava já uma fase da sua carreira pouco compatível com a forma como é tipificado a ponto de não poder valorizar um argumento que carece de uma sólida base narrativa.
Nada explica que um tão velho filme sem qualidade seja agora estreado.”

Faltam-me os adjetivos para caraterizar esta “nota crítica”. Apostaria que quem a escreveu nunca viu o filme.

António Furtado da Rosa
 
O DUELO:
 
TRAILER:
 
 

sábado, 1 de junho de 2013

PEDE PERDÃO A DEUS: O DURO CAMINHO DA VINGANÇA



Chiedi Perdono a Dio... Non a Me
O argumento é simples: Matam a família durante a sua ausência e Cjamango (Giorgio Ardisson) enceta uma vingança implacável sem concessões ou qualquer piedade, ajudado pelo interesseiro Barrica (Pedro sanchez), que viu o massacre, e que procura tirar proveito da situação cobrando os prémios oferecidos pelas cabeças dos assassinos. Para compor o ramalhete Cjamango está apaixonado, e é correspondido, por Virginia Stuart que é filha do seu pior inimigo…

 Baseando a sua intensidade dramática mais nas imagens de violência do que no desenvolvimento das situações, Pede Perdão a Deus não perde qualquer mérito por isto, bem pelo contrário, e constitui prova de que um orçamento minúsculo e um argumento parcimonioso podem gerar um filme francamente interessante e com um ritmo alucinante e ação trepidante. Cjamango não é, contudo, o anti-herói típico do género, não é a ganância que o move, mas sim a sede de vingança, pela qual está disposto a renegar tudo, até o amor, e transforma-se num lacónico anjo vingador e exterminador. Cjamango é bem interpretado pelo sempre fiável Giorgio Ardisson, ator que interpretou apenas cinco westerns, mas sempre de forma convincente, e que se notabilizou sobretudo em filmes de espionagem nos quais interpretava o Agente 3S3.
O filme conta também com nomes conhecidos do género como Anthony Ghidra (Balada para um Pistoleiro), Peter Martell (Ringo, o Cavaleiro solitário) ou Pedro Sanchez (Ignazio Spella) presença constante nos westerns de Edoardo Mulargia. Cristina Iosani interpreta aqui o seu papel mais importante na sua fugaz carreira no cinema (fez 7 filmes, 5 foram westerns) e é convincente no papel da infeliz Virginia. Fica a ideia que poderia ter ido mais além na carreira.

A realização, tal como o argumento e produção, esteve a cargo do ator e argumentista Vincenzo Musolino que aqui fez a sua estreia nas lides da realização. Realizaria mais um filme, Quintana, antes de falecer prematuramente em 1969 com 39 anos. Deixa-nos como legado esta pequena pérola para deleite dos admiradores do género ou daqueles que gostam de um bom filme de ação.

No entanto, este filme acaba por ter outra curiosidade. Na edição DVD que adquiri, da Sony italiana, edição muito razoável mas sem extras e com áudio em italiano, o filme começa logo com o genérico inicial. Quase por acaso, encontrei uma versão de um raríssimo VHS italiano que apresenta este filme com um prólogo e um epílogo nos quais Cjamango, agora um homem velho, tenta convencer um jovem mexicano, cujos pais foram assassinados, sobre a inutilidade da vingança. Legendei-os e apresento-os agora aqui:

                                                                              Prólogo:
 
Epílogo:
 
Pede Perdão a Deus...

sábado, 9 de fevereiro de 2013

A MAGIA DE RINGO - O GRANDE CINEMA DAS PEQUENAS COMUNIDADES



O Regresso de Ringo - 1965
A MAGIA DE RINGO

de

António Furtado da Rosa

Numa noite agreste de janeiro, o vento gélido fustigava, inclemente, os rostos curtidos e enrugados dos dois velhos pescadores. Todavia, esse facto não os demovia, e dirigiam-se ao Cine Teatro Açor para assistirem a mais uma “fita”, como diziam, algo que faziam frequentemente e quase religiosamente. Há muito que o Ti Manuel e o Ti João se tinham rendido à fantasia do Cinema, aos seus heróis e aos seus vilões, aos seus dramas e às suas comédias, aos seus encantos e aos seus desencantos. O Cinema para eles era, sobretudo, um escape às duras fainas numa luta contínua contra o Atlântico, por vezes benevolente e generoso, mas muitas vezes duro e implacável.

Depois de comprarem o bilhete, sentaram-se sensivelmente a meio da plateia e ajustaram-se, o melhor que eles puderam, nas cadeiras de madeira. À sua volta, os mais jovens esperavam com notória agitação o início do filme, pois tratava-se do último filme de “Gringo”, assim era conhecido a estrela do western italiano Giuliano Gemma, ator que levava jovens e menos jovens em catadupa às salas de cinema pelo mundo fora. O Velho Manuel, que tal como o seu velho amigo João, não sabia ler, já tinha visto os cartazes e reconhecido o herói da “fita”, mas não sabia o título.

- Sabes o nome do filme, João?

- Não. – Respondeu o João.

João virou-se para a fila de trás e perguntou a um jovem que roía uma fava torrada com determinação:

- Ó rapaz, como se chama o filme?

- O “Regresso de Ringo”. – Respondeu o rapaz rapidamente com a fava quase a saltar-lhe da boca.

Subitamente ouviu-se uma campainha e algumas luzes apagaram-se, a excitação aumentou, ia dar-se início à magia…

Terminado o genérico inicial, Gemma (Ringo) aparece no ecrã, e logo se deu a primeira explosão de alegria a compasso de algumas palmas…

- Ele está louro desta vez. - Murmurou o Manuel

- Não faz mal. Logo que ele dê umas punhadas…

Poucos minutos depois Ringo disparava e matava dois mexicanos com ar suspeito, para gáudio da plateia.

- Começa bem. – Comentou o João.

Os minutos passavam enquanto Manuel e João, incapazes de lerem as legendas, tentavam perceber o enredo entre lutas e tiroteios. Os bons e os maus já estavam bem identificados. O filme era um western italiano vagamente baseado na “Odisseia” de Homero. Ringo era uma espécie de Ulisses e quando regressa da Guerra da Secessão, encontra a sua mulher, Hally (Penélope), subjugada ao domínio de Paco Fuentes, o chefe dos bandidos. Manuel, tentando perceber o enredo lá perguntou ao amigo:

- Afinal, a sujeita é irmã dele ou a mulher?

João encolheu os ombros e redarguiu:

- Acho que é a mulher.

- O sujeito meteu-se com a mulher do outro? Isso não é pecado? Grande pulha.

- Só se o marido descobre.

Cine Teatro Açor (Vila de Capelas)
Riram-se baixinho, enquanto o herói mastigava um pedaço de carne levantado do chão. O vilão cometia a suprema heresia de humilhar o herói. Os espetadores, em plena empatia com o herói, desejavam que este respondesse na mesma moeda, mas ainda era cedo, o herói teria passar ainda mais umas provações antes de retaliar e lá seguia em frente sem escutar os apelos da plateia.

- João, sabes o que eu fazia àquele bandido?

- O quê?

- Arrancava-lhe as bolas com um arpão!

- E era bem feito. Mas já não podes com um arpão, homem, já mal podes com um facão de matar porcos. Um arpão… tu tens cada uma…

- Ainda sou muito homem!

- Ainda bem. És feio como um bode, se fosses mulher era de fugir.

As filas mais próximas, à frente e atrás, reclamaram ruidosamente e os dois velhos lá se calaram.

A magia continuou, seguindo as peripécias do herói. Às tantas Ringo é sepultado, com honras militares e tudo, graças a um plano malévolo arquitetado pelo vilão para poder casar com a mulher de Ringo.

- Manuel, quem foi que morreu, afinal?

- Sei lá. Espera aí.

João virou-se novamente para o rapaz da fila de trás, que continuava a roer uma fava.

- Quem foi que morreu?

- Ti João, eu penso que foi… eu não sei.

- Não sabes? Não sabes ler?

- Pouco. Nunca atinei na escola. Tenho a cabeça mais dura que uma pedra.

- Bom, há de se ver.

Entretanto, alguém, junto ao roedor de favas, fez-se ouvir:

- É o gringo que está a ser enterrado.

- O quê? – Sobressaltou-se o velho João – Pensas que sou tolo, rapaz? Ele está ali e ao mesmo tempo está a ser enterrado? Outro que não sabe ler.
Entretanto voltaram os protestos a pedir silêncio enquanto o roedor de favas quase sufocava, engolira a fava quase inteira. Nada que umas valentes pancadas nas costas do vizinho do lado não resolveram rapidamente. A fava saltou que nem um bólide da boca do desgraçado. Mas não desistiu, prontamente tirou mais uma fava do saco, descascou-a e atirou-a para dentro da boca com o olhar fixo no ecrã. O filme continuava e Ringo, por obra e graça do argumento, estava agora no quarto da filha e é surpreendido pela mulher que acaba por o reconhecer, apesar de disfarçado, ao som de uma bela melodia do maestro Ennio Morricone, numa cena plena de romantismo e drama e filmada com esmero por Duccio Tessari num jogo de sombras fabuloso. Se calhar, gostou tanto desta cena que acabou por casar com Lorella de Luca, a atriz que interpreta Hally. Até os corações dos dois velhos pescadores vacilaram. O silêncio era profundo. A empatia entre o herói e os espetadores era agora mais forte do que nunca. Mas ainda faltavam alguns minutos. Ringo contra-ataca e lutando com denodo, reconquista tudo o que lhe pertencia para satisfação geral. Os maus foram punidos e os bons recompensados. As Luzes acenderam-se, debaixo de aplausos. Era assim vivido e celebrado o cinema nos anos 70 do século passado, no cinema da minha terra. Nos cinemas de tantas terras e de tantas gentes longe dos grandes centros urbanos e elitistas. No fundo, a maioria de nós tem um “Cinema Paraíso” como recordação, o meu chama-se Cine Teatro Açor na Vila que me viu nascer: Vila de Capelas.

O Ti Manuel e o Ti João saíram do cinema em silêncio a caminho de casa, em contraste com os mais jovens que ainda vibravam com as peripécias do filme, para eles, a magia seria substituída pelas agruras da vida real, uma vida dura. Mas durante algum tempo, sentiram-se heróis de uma história que também fora deles…
                                                              


                                                              
Trailer: